13 junho 2007

Margem de erro

Dentre tantas andanças em calores insuportáveis, aquele, em especial, me trouxe mais que cansaço e suor.
Os transeuntes acotovelavam-se entre tantos outros estressados, as crianças choravam pediam presentes em seus gestos delicadamente mimados de se arrastarem no chão.
Minha camiseta, sempre seca, ia contra meu rosto suado que pingava sobre as lentes dos meus óculos. O relógio marcava 29 graus e a temperatura do meu corpo parecia ultrapassar a marca normal dos 37.
Enquanto o estacionamento do shopping center permitia entrada e saída de carros e a passagem ou não de pedestres num ritmo cadenciado, esperei um segurança brucutu me olhar de seus óculos escuros e tentar ser simpático me permitindo atravessar.
O próximo estabelecimento era outro estacionamento. Um segurança, dessa vez com roupas mais comuns, usava azul claro. Tinha em torno de 55 anos, mas mantinha um semblante de ódio, uma testa franzida com rugas permanentes, lábios rachados e músculos forçados para não exibir um sorriso.
Nesse momento, como de impulso, olhei para trás. Sem motivos, sem curiosidade, puro instinto.
Um ser humano de quatro anos de idade corria pela calçada. Olhei ao redor esperando que o responsável aparecesse e o resgatasse em meio a pessoas, carros, fumaças, gritos e buzinas. Era uma criança solta livremente numa avenida em horário de pico.
Parei. Com a mochila no ombro esquerdo, sequei minha testa com as costas da mão direita e a franzi. Com lábios entreabertos, minha surpresa era visível. Não sou do tipo que se adapta às mazelas sociais ou acha comum o descaso humanista. Parei e fiquei observando como se movia. Percebi que não era responsabilidade de ninguém. Era um menino de rua. Era uma responsabilidade de muitos. Pai desconhecido, mãe relapsa, políticos corruptos e sociedade acomodada. Era responsabilidade de tantos e, ao mesmo tempo, era deixado de canto.
Trazia em suas pequenas mãos um maço de cigarros branco. Dentro do maço, o vazio. Atravessou um estacionamento particular, passou pela minha frente e ali parou. O segurança, aquele da testa enrugada, o pegou pelo braço direito com a delicadeza de um carrasco. Talvez não tenha filhos ou netos ou ao menos saiba como se trata um ser humano. Olhei com reprovação. O algoz resmungou algo que ignorei.
O moletom do menino levantou-se. Não suava. Trajava agasalho até que limpo e não se via uma gota de suor em seu rosto. Engraçado como são as crianças: em dias frios vestem bermudas e andam descalças; em dias quentes vestem roupas pesadas. Adaptam-se a tudo no mundo em que vivem.
Ele também trazia a testa franzida. Era um mini-homem de rosto sujo. Tinha um semblante sério e um olhar profundo em olhos negros.
Agachou-se e com o maço de cigarros nas mãos, pegou batatinhas fritas de um lixo ao lado. Enfio as minhas mãos nos bolsos e percebo que, por desmemória, não tinha nenhum centavo com a minha pessoa. Não o deixaria comer se ele tentasse. Ele não tentou.
Peguei a câmera fotográfica e o observei. Relutei em tirar a foto. Preservei, como que por respeito, sua privacidade escancarada, que ali fazia um striptease de sua alma. Encostado nas correntes de um estacionamento fechado, ali ele parou. Olhei ao redor e as pessoas desviavam sem nenhum sentimento de culpa ou preocupação. Agachei-me e fiquei em sua frente. Ele encaixava as batatinhas murchas e pretas na corrente enquanto me olhava com ar de desconfiança. Parei de suar. Foquei a cãmera em sua direção e tirei fotos. Ele parou e seus olhos focavam a cãmera de uma forma tão forte que me incomodou. Eu o observava e isso era novidade para ele.
Tirei as fotos rapidamente como se fosse proibido, como se registrar aquilo fosse uma aceitação.
Levantei-me, lhe dei um afago na cabeça e me virei. Não perguntei seu nome. Na verdade nem ouvi sua voz. Talvez ainda não falasse, talvez não tivesse um nome.
Para quem vê a foto, é uma criança com um maço de cigarros nas mãos.
Para quem observa, é uma pessoa perdida entre tantas outras.
Para quem sente, é um ser humano com um olhar inesquecível.

3 comentários:

débora lopes disse...

Sociedade acomodada. Completamente acomodada.

Anônimo disse...

Todo o texto, nas três últimas oração.

É aquela indignação cheia de fúria sensível que costuma ser gerada em nós... Só que pra surtir efeito, ainda é pouco.

A gente bem sabe que a única coisa transformadora na vida é a ação. E nesse caso, nem caberia elencar ou lembrar que esxista também aquela que se dá pela omissão.

Anônimo disse...

4 anos e um maço de cigarro nas mãos. imagina?

responsabilidade de vários.
muito triste.

ele ñ parece uma criança. parece adulto.