29 setembro 2007

Ele chegava nas noites de dor. Subia, sorrateiramente, o pequeno canteiro de terra úmida e folhas secas sem fazer alarde, passava por entre as alamedas do cemitério de luzes falhas que piscavam num ritmo perturbador. E entrava.
Via nomes das placas do velório, de pessoas desconhecidas e nomes alheios. Tímido, andava com as mãos nos bolsos do moletom vinho desbotado, roto, sujo e atravessava o portão de vidro riscado.
Visitava os mortos de famílias que não pertenceu, via semblantes tristes, olhos inchados e narizes vermelhos. Se emocionava. Não sabia de onde nem porque tirava essa dor de si. Nem como.
Viver nas ruas e se aconchegar num lugar quente tornou-se um ritual. Era um ato de velar numa cerimônia só sua.
Os familiares, amigos, conhecidos e inimigos presentes jamais reparavam na sua presença. Não puxavam assunto, nem lhe olhavam com desconfiança. Pensavam, talvez, ser alguém que o finado conhecia em segredo, pois todos conhecemos ninguéns que outros alguéns desconhecem.
Olhava para o caixão e pensava nos olhos fechados, nas coisas vistas em vida que ele talvez jamais verá. Mas com certeza ele viu coisas que o morto jamais viu - e jamais verá.
Chorava uma dor. Talvez a perda de algo que ele não foi capaz de sentir próximo de alguém vivo.
Não sofreu por amor. Não perdeu pois nunca teve. Não sentiu-se injustiçado pois nunca ganhou.
A infelicidade do nada doía mais do que a tristeza da dor.
Tocava as mãos gélidas iguais às suas, sempre sujas e ásperas. Mas tinha a delicadeza inexplicável de tocar cuidadosamente a efemeridade da vida.
Jamais havia sentido a separação, pois sua solidão jamais o abandonara. Seu bem mais precioso lhe assombrava noites a fio. Era hora de buscar o acalanto naqueles que dormem, naqueles que herdam dos vivos a dor da separação.
Suas lágrimas escorriam pela barba suja com bigode amarelado de tabaco e ele fechava os olhos. Sentia a mão estática no toque.
Jamais haviam lhe tocado com ternura.
Depositava nos que não mais vivem o carinho excluso, a falta desmedida de um afago.
Tinha no último adeus a um desconhecido o início da amizade sincera.
Não sofreria com isso.
Evitava amar para não sofrer a perda. Fugia do carinho para não lembrar deles quando lhe fossem privado. Não permitia alegrias para depois somente viver de lembranças.
Fingia por um momento que havia perdido alguém importante.
Enxugava as lágrimas, acendia um cigarro, descia o canteiro - que agora tinha folhas úmidas do orvalho e terra seca de túmulo.
Deitava na rua, coberto de papelões e não mais chorava.
Havia chorado a dor dos vivos pois possuía uma vida morta.

4 comentários:

george jung disse...

de onde você tirou isso léo?

LéoFreitas disse...

ontem vi um mendigo entrar no velório que eu estava.
daí pra ficção foi um pulo.
:~

débora lopes disse...

"Jamais haviam lhe tocado com ternura."

Léo,

és homem, mas se escrevesse sob pseudônimo, eu ficaria em dúvida. Explora o sentir de forma aguda e ao mesmo tempo com uma delicadeza mansa, serena, clássica - quase feminina.

george jung disse...

genial.

espero que esteja tudo bem, by the way.